segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Senhorzinho


. Outro dia me cansei. Peguei a canseira do tempo, que não para nunca. Deve estar velho, definhando, sem ter sequer ideia de quanto mais estará em curso... Meus joelhos cederam à preguiça e minhas costas repousaram no piso frio de tábua, que me acolheu com seu abraço duro. A paisagem se esforçava, mas era entediante: moveis novos, barulhos usuais, funções antigas, atualizando-se desnecessariamente. Meu umbigo parecia ser o centro do mundo e, embora estagnado eu parecia sentir o mundo girar em volta de meu próprio eixo... Como se me mostrasse, todo sardônico, que se eu parar, ele não para.
. Eu ignorei esse sinal (talvez nem fosse sinal), afinal, eu, ínfimo, não receberia recados do mundo. Em um suspiro, inalando um ar seco que quase me levou à tosse, fui fechando meus olhos. Meus cabelos balançaram tediosos, encontrando um vento furtivo que serpeou pelas festas que me cercavam. Mas então, em pouco, o lençol que cobria a janela balançou-se violentamente e caiu. Um vento gelado se espraiou pelo cubículo que chamo de apartamento e meus cabelos emaranharam-se numa dança feroz. Junto com o vento veio poeira, o barulhento urgir da cidade (que ascendia do chão de asfalto até minha janela, no décimo quinto andar), e uma envolvente névoa de algo estranho. Levantei-me irritado, é claro, e segui em direção à janela. Três passos bastaram para alcançar o meu próximo projeto: organizar a coberta em seus três prendedores de roupa: a mais perfeita emulação de cortina. Minha força hercúlea moveu a janela em alguns poucos centímetros. Ela rangeu estridente em resposta e eu, cansado, dei de ombros.
. Pareceu mais fácil me debruçar naquele pico e sentir o vento no meu rosto. Assim o fiz, e como acima do meu andar só há mais uma fileira de cubículos, vi um céu de cara fechada, que berrou para mim:
. "Olha! estou vermelho como sangue, daqui a pouco chovo loucamente e sigo meu ciclo".
. "Puta chuva", pensei.
. Embaixo, as pessoas se desorganizavam num formigueiro e luzes, passos e pressas. À frente, no topo dum prédio antigo e vertiginoso (o famoso JK), um relógico gigantesto mostrava o tempo passando, incansável. Como que sussurrando às pessoas embaixo o que elas já viam em seus pulsos, em suas paredes, eu seus instintos: que estavam atrasadas. Pouco importa o para quê, mas estavam atrasadas.
. Minha janela tem vista para o mar de gente no chão, e para a ressaca de janelas aos meus lados. Todas estavam fechadas com cortinas toscas e sujas, algumas luzes acessas me mostravam os vultos das pessoas indo e vindo em seus lares... Me pergunto se são conformadas com o fado. Mas as pessoas faziam seu jantar, abraçavam seus filhos, beijavam seus namorados, seus espelhos... As pessoas seguiam, para o destino que montam (o que pode não ser um centímetro a frente de onde estão), mas seguiam.
. Descendo o olhar para dois andares abaixo, notei uma janela aberta... As luzes do cubículo estavam apagadas, a cortina balançava com a força do vento e ao seu lado, um senhorzinho fixava seu olhar na rua. Seu corpo e sua fragilidade refletiam na sombra.
. Era um silêncio doloroso, mais pesado que o ronco dos ônibus, a buzina dos carros e as conversas transversais abaixo. Calava tudo! Calou o vento, que batia no meu rosto mais suave, sem urgir, como se tivesse absorvido a melancolia do homem. Seu olhar cansava, seu olhar pensava, seu olhar lembrava. Era como se tentasse respirar o ar cansado de cinquenta anos atrás.
. Eu notara, de outros dias, que ele morava sozinho em seu apartamento que parecia ser ainda menor que o dos outros. E eu nunca o vira fazendo seu jantar, abraçando seus filhos, beijando suas namoradas ou seus espelhos. Imagino que seus espelhos, inclusive, não sejam tão carinhosos. Imagino que sejam secos, nada eufêmicos, ao contrário, hiperbólicos e absurdamente verdadeiros em suas hipérboles. O senhorzinho estava prostrado na janela escura, se confundindo com o escuro da noite, quase como se não existisse. Meu olhar preso à sua pose triste capturava também o enorme relógio sobre a cabeça de todos. Com seus segundos passando, ameaçadores. Sabe-se lá quanto tempo o resta, sabe-se lá o que conseguiu ou conservou. Sabe-se lá o que aquele olhar reserva e o que ele revela.
. Me inundei em pensamentos sobre a solidão, sobre a velhice e sobre o tempo. O tempo é irredutível. É herói e vilão e é quem leva e quem traz. Começou a serenar, e o sereno que molhava o meu rosto certamente molhava o do senhorzinho, estático ao relento. Mas o que esperava ele lá? Naquela posição e naquela exposição? Em sua idade isso pode ser fatal, mas ele parecia não ligar. Talvez estivesse absorto em seus pensamentos... Será que ele já tivere amores que pudessem o aquecer nesta noite fria? Será que já houvera abraços para o segurar? Será que ele espera haver?
. O tempo não está definhando. Ainda há muito a se fazer. Muito para se dar, para se tirar, para encantar, para cantar e para emudecer. Sempre estará em curso, infinito e indomável. Sem jamais se cansar. Como pudera eu ter ficado cansado por ter adquirido a canseira do tempo? O céu me lembrou de sua cor com um estrondoso trovão, e em segundos uma enchurrada estava varendo a cidade. O senhorzinho trancou sua janela e perdeu-se na escuridão de seu interior.
. Meus pés se molharam, já que a chuva invadiu minha sala. Acordado, tranquei minha janela e o som abafou. Meu corpo só sentia a água gelada nos meus pés. E meu ouvido só ouvia o tempo, em seu ritmo inacabável e meticuloso me dizer que mesmo se eu cansar, ele passa.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Destino (música)


Me carregam pelos braços
Tuas cordas invisíveis
Qual peão em tabuleiro
Tresloucado em facínio

Corro por todos os lados
Desenhados, compostos
Inerrantes, multiversos
Se eu crer cada perna é minha
Meu pensamento é excurso

O suor sobre a tez cansada
Híbrido ao orvalho do fado
Estafado e interno falho
Me desvio de teu punho
Sem jamais sair do curso

Me emaranho em casas marcadas
Com meu nome nas calçadas
Me esperando em braço aberto
Para mim o que era incerto

Insone, descalso
Escasso,
Cada estrela já cansada
Queima calma, eterna e alva
A me dizer que o tino fino
Que me leva é tal Destino
Que as penas de minhas asas
São lavadas em sua casa
Que de minhas lentes o brilho
São lustrados com exímio
Pelas mãos murchas marcadas
De um ourives infinito...


Hércules J. Mousinho

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Em Tudo Há (Música)


Olha lá!
Quem é que vai gritar
Uh la la
Quando ela for chegar?
E quem será
Que vai regozijar
Quando cantar
Espectral soar

Ilê aiê...
Ilê aiá aiá...

Soturna quão
Voo de carcará
Pálida quão
Espectral luar
Dura quão chão
Que nunca vai rachar
Sem compaixão
Pra com paixão levar

Em tudo que é...

(Heras, Veras, Gatos, Gajos, Sonhos, Tontos, Tantos Outros...)
Em tudo há!

(Rosas, Restos, Olhos, Vasos, Sapos, Ratos, Moças, Coxas...)

E quem sonhar
Embalde irá tentar
Desvencilhar
De seu mortal clamar
Onipresente
Espectral no ar
De jovial
Beleza trilenar

E paciente
Senta pra jantar
De marcas secas
Faz seu caviar
Rapina fina
Prestes a voar
Tão satisfeita
Espectral fadar

Em tudo que é...

(Peixes, Seres, Passos, Rastros, Pernas, Penas...)
Em tudo há!

(Luas, Ruas, Vozes, Lordes, Peras, Seitas...)

Um lá lá...

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Elegância (Música)


Irei ao encontro da dor
Trajando garbo e terno
Nadando em sangue de amor
Profuso sangrar eterno
Você me intimou e eu fui
Sem grunhir, um zumbi todo entregue
Minhas pernas foram espinhal adentro
Pisando, cortando, queimando
Espectro etéreo
Ruindo interno
Falso belo em genética Gray
Rosto errado soando brando
De vitral anjo vivendo em inferno
Desfilando, cambaleando
Ruindo interno,
Chegando falei:
Olhe, não me importo,
Aqui estão alcool e isqueiro
O alvo e o faqueiro
Mire com sua insensatez incerta
Você me fez duro, não me fez pedra
Crave, rasgue, não pare,
Se assim lhe convier
Piedade, hei clamar embalde
Mas loucura vier
Ao lado estão
Algodão e a cura
A linha e a agulha
Se é pra morrer de amor, Amor
Tal mortalha costura
Irei qual amor eterno
Mas com garbo e impecável terno.

Ps: Isto é uma música

domingo, 23 de maio de 2010

Motor


Para, caralho!
Para, carro!

Que estranho ir. Menos que ir, ser levado.
Que estranho ser lavado.
Ser tão alheio...
Ter tão arreio...
Quisera pisar no freio
Só quisera
Que falta? O pisar?
O que falta?
Falta acelerar?
Dobrar, talvez...
Guiar, em vez...
Ora, que audácia me desviar seria!
Fugir do fado do fim do dia.
Questionar se o destino é bom,
Desfazer o que elejo dom.
Seguir descomplicado,
O caminho sinalizado
Angustiantemente simples assim
Tão simples quão tão vilão de mim
Para, carro!
Prestes, o fim
Tão etéreo
Jazendo em mim tão incerto
Me esperando em paciência
Em tudo se há fim em latência
Há embalde estrada
Hei embalde em debandada
Quisera quebrar o volante
Quisera sair
E viver andante
Destoar, me fazer de ruido
Enxergar sem aquele vidro
Diáfano
Queria estar mais distante
Do carro
Quisera ser só andante
Arcar o escarro
Queira pingar em mim,
Chuva!
Quem dera temporal!
Correr
E gritar
E correr
Sem motivo
Sem motor
Sem placas
Sem fachadas
Sem fechadas
Sujar meus pés de lama
Sujar meu nariz de lama
Lambê-la
Embrenhar numa selva verde
Pular todas as paredes
Pisar em qualquer lugar
Que não esse tapete
Tão preto
Tão opaco
Tão chato
Queria poder gritar
Me rasgar em falsete
Sorrir em quando o mundo dança
Cortar o cinto de segurança
Com os dentes
Que estranho ser dormente
Demente
De mente tão fraca
Empurra a faca
E mente
Sentado tão confortavelmente
No encosto do carro
No estorvo do carro
Com preguiça imensa,
Somente pensa:
'Para, caralho
Para, carro'."

domingo, 10 de janeiro de 2010

Ponto (Música)


O quanto vale olhar o céu?
E devanear às estrelas?
Às vezes pode ser cruel
Chorarmos ao vê-las

E entender que somos assim:
Tão ínfimos
Frívolos quão ponto de cruz
Tão lúcidos

Mas que há de convir a vileza
Roubar de cada ponto um pouco de beleza
Lograr do brilheiro a candura
Alumiar as asas escuras


O quanto vale olhar o céu
E divagar ao luzeiro?
Rabiscar a vida num papel
Qual cometa ligeiro

Ascender do chão em partida
Na ilusão d'outro céu emerso
Tingir de viver a vida
Na extensão do universo

segunda-feira, 23 de junho de 2008

A prova de que o cálculo é intrínseco



O espaço que me dão para escrever já estava se findando quando eu decidi escrever outra coisa. Há um cálculo matemático ao lado, que meu senso de realidade julga ser superior a mim... Epa! Mas ele é restrito. Ele está escrito e pronto! Ponto. Ele acaba... A tentativa dele é de me fazer errar; ele não está aqui para ser fácil. Ele fala da idade de jovens fictícios que tecnicamente me desestimulam.
Tem gente queimando a cabeça, tem gente chorando por ele... Pode? Ele é passageiro e logo, logo vai ser amassado... E eu o julguei ser superior a mim... E ele não perdura! Como algo que não perdura pode ser superior a mim? Só se eu fosse tão descartável quanto este algo.
Eu não ia falar do que vai aparecer aqui neste texto. Mas agora vou porque essas lágrimas ao meu lado me irritam! Que bom que as coisas mudam, as pessoas mudam. Mas só mudam se pensarem. Se eu não houvesse pensado o cálculo ainda estaria na minha frente. Mesmo sem perdurar... (controlo o sorriso enquanto escrevo isto - tá rolando uma prova de matemática ao meu redor).
Agora o espaço destinado à minha batalha para resolver o problema, ou às minhas lágrimas (teoricamente), está todo rabiscado de pensamentos, estes, que superiorizam. Melhor negócio, não?
[...]
Agora meus pensamentos de caneta azul já estão ladeando um cálculo que eu sei resolver facilmente. A vida me ensinou: basta olhar para a prova ao lado. E nem sou dos mais vagabundos; só gosto das entrelinhas. Que se diga que as mesmas mãos que escrevem pensamentos e fazem parte de mim, que ignoro os cálculos, tecem carapuças de todas as formas e tamanhos, as quais servem, inclusive para o que (ou quem) não tem cabeça.
À propósito, olhei outra questão do papel ao lado. E o positivismo das lágrimas que ladeiam a questão dos jovens (que me desestimulavam, lembram?), faz-me acreditar que eu (ela) acertei. Pelo menos esta questão não está toda encharcada hihihi.